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Mães de terreiro têm direito de ter filhos?

Por: Luciane Barbosa – Dofonitinha de Oxum, Iaô do Ilê Omiojuarô

O ano é 2019, abra todas as portas e janelas dos seus sentidos e sinta, lá vem mais uma história.

Começamos a nossa história com a eleição dos Conselhos Tutelares, que ocorreu em 06 de outubro de 2019. Era domingo. Um desses domingos, dia de família. Transporte-se para um domingo do passado recente, anterior ao nosso momento pandêmico e posterior ao nosso momento de intenso ataque aos direitos humanos, decorrente da ascensão dos grupos conservadores ao poder executivo, já estruturados no poder legislativo e judiciário – que nutrem e espalham ódio às populações pretas, lgbtqia+, pobres, de comunidades tradicionais e de terreiros de matriz africanas.

De acordo com o G1, em reportagem de 07/10/2019(1), a eleição dos Conselhos Tutelares ganhou importância devido à polarização dos candidatos, grupo de alas da Igreja Católica e da Igreja Evangélica. A disputa, publicada pelo G1 com o título “A batalha entre católicos e evangélicos pelo domínio dos Conselhos Tutelares”, em reportagem de 01/10/2019(2), apontou a estratégia das igrejas para eleger representantes na renovação dos Conselhos Tutelares, e, que entidades de defesa dos direitos humanos temiam a transformação dos órgãos em instâncias religiosas.

O texto da reportagem, nos informa que o que está em disputa é o controle sobre alguns temas: como as questões de gênero e sexualidade, e a condição de exercer maior controle das ações das escolas, das famílias e profissionais nas escolas, em nome do “Compromisso com Deus”.

Agora, desloque os seus sentidos para o tempo presente. Para o choque de realidade, temos algumas estratégias. Basta colocar em um link de pesquisa na internet o valor da cesta básica – que no estado do Rio de Janeiro alcançou o custo de R$ 733,14, equivalente a mais da metade do salário mínimo; o valor do combustível – com o custo da gasolina em R$ 9,00 o litro; o valor do litro de leite – por R$ 9,00; com o aumento de 20% de mortes por armas de fogo no Rio; mais de 60 milhões de pessoas no Brasil enfrentam a insegurança alimentar – o nosso país retornou ao mapa da fome; o Brasil no 5º lugar no ranking de feminicídio no mundo – com um estupro a cada 10 minutos e um feminicídio a cada 7 horas; em 2021 mais de 300 pessoas LGBTQIA+ morreram no Brasil.

Infelizmente, a lista de buscas que podem nos auxiliar para pensarmos o hoje na realidade brasileira, não tem fim. Esse texto não chegaria ao seu ponto principal, que é a perda da guarda de crianças e adolescentes por mães de terreiro de matriz africana, vítimas do racismo religioso, da intolerância religiosa, do controle dos corpos nas escolas, e na sociedade. Veja, não escrevi pai. As perdas que serão contadas aqui dizem respeito a perda da guarda pela mãe.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA, no artigo 22, resguarda o direito de transmissão familiar de crenças e culturas, assegurados os direitos da criança estabelecidos na legislação. O artigo 5º da Constituição Federal, de 1988, assegura o livre exercício dos cultos religiosos. Os casos de denúncia muitas vezes ocorrem por parte da família e da escola. A denúncia demoniza os terreiros, tipificando em maus tratos e abuso a presença de crianças no espaço religioso e os costumes e tradições das religiões de matriz africana.

A compreensão do sistema de justiça, seja inicialmente por meio do Conselho Tutelar, ou seja no último movimento que resulta na suspensão e perda da guarda, é, na maioria das vezes, vista como omissão de cuidado, abuso, maus tratos, violência física, verbal ou emocional, abuso de autoridade, falta de responsabilidade dos pais, castigos, atos contrários à moral e bons costumes, atos lesivos, dentre outros.

Em julho de 2021, a Justiça de Campinas, em SP, absolveu uma mulher de 33 anos denunciada pelo crime de “lesão corporal com violência doméstica agravada”, após iniciar a filha no candomblé. Nesse mesmo ano, em Araçatuba, uma mulher teve a guarda da filha de 11 anos suspensa depois da avó da menina alegar que a criança sofria maus tratos e abuso em um terreiro de candomblé. Nesse caso, a menina frequentava o terreiro com sua mãe e com o seu pai.

Em João Pessoa, PB, em 2020, uma Mãe de Santo perdeu a guarda de seus filhos, de 11 e 15 anos, para a irmã. De acordo com a reportagem do Jornal O Globo, de 06/08/2021, a denúncia conforme descrita no Conselho Tutelar registra que a mãe colocou as crianças em situação de risco constante dentro da própria casa e com a presença de pessoas de conduta duvidosa, com bebidas e festas, noite a fora.

Como medida de proteção às crianças, a mãe deveria se comprometer a não realizar rituais religiosos em casa, onde mora com seus filhos, e, afastar o pai de santo da residência. Por não ter cumprido, a mãe das crianças teve uma medida protetiva emitida para que ela ficasse 500 metros de distância de seus filhos. Essa medida inclui ligações e mensagens. É importante destacar que, nas palavras de Mãe Josileide da Gama, não houve qualquer constatação, provas e laudo, que atestassem violência física ou psicológica contra as crianças. E, mesmo assim, sem nenhum acompanhamento de assistente social, ou do aparato do Conselho Tutelar, ou seja, do Estado, ela foi responsabilizada e criminalizada, afastada de seus filhos, vítima da violência e do racismo religioso.

No domingo, 03 de julho de 2022, o Brasil assistiu no Fantástico – programa de final de domingo da emissora Globo, o caso da mãe e de sua filha, em Ribeirão das Neves, MG. O Conselho Tutelar, após acatar denúncias da Escola Estadual João Lopes Gontijo, acionou o Ministério Público, denunciando a mãe por maus tratos, sequestro e cárcere privado. E, em 20 de maio, dois dias após a denúncia, a adolescente foi retirada dos cuidados da mãe e levada para um abrigo da Prefeitura da cidade. O exame de corpo de delito, utilizado para atestar os maus tratos, foi realizado em 15 de junho, um mês após a perda da guarda. Assim como no caso de Mãe Jocilene, as medidas a serem tomadas pelo Conselho Tutelar são encaminhadas para o desfecho do caso, ou seja, não foram tomadas as medidas de visita, investigação, conversa ou até mesmo de apoio para a família, que poderiam garantir o acompanhamento educacional, pedagógico e médico. Obviamente, trata-se de um não apoio, de perseguição, violência, racismo religioso, de perda de direitos, dignidade e cidadania.

Casos como esse têm crescido, e, não foi a primeira vez que foram ao ar. Em julho de 2020, foi ao ar no mesmo programa um caso do interior de São Paulo. Após denúncia da avó, que inicialmente foi anônima na polícia, de que a criança sofria violência, abuso sexual e maus tratos durante os momentos de recolhimento e iniciação no candomblé, a comunidade de terreiro foi surpreendida por um forte esquema de aparato policial. Em sete viaturas os policiais chegaram ao terreiro. Em relato aos jornalistas, a Mãe de Santo contou que ao abrir o portão foi surpreendida por armas apontadas para o seu rosto.

Mesmo com a constatação e relatos dos policiais de que não havia nenhum indício de violência, a única observação no caso foi: cabeça raspada. As pessoas foram conduzidas para a delegacia, e a criança de 12 anos foi encaminhada para o IML para a realização de exame de corpo de delito. A reportagem destacou o trecho do laudo, onde o perito registrou que “concluiu pela ausência de evidências de lesões corporais”, e que a adolescente alega “ter raspado o seu cabelo de forma voluntária e com o consentimento de sua responsável legal”.

Mais uma vez há necessidade de explicar nossos costumes para a sociedade, que os demoniza. E isso, sem esquecer das perseguições que as crianças de terreiro sofrem no cotidiano das escolas, na vizinhança, no condomínio, no bairro, e, infelizmente, na própria família.

Ao observar esses casos, fica parecendo que há uma tentativa de “resgatar”, de “salvar” a criança do terreiro e retirá-la da convivência das pessoas de religiões afro-brasileiras. Lembra do início desse texto, das eleições dos Conselheiros Tutelares? Pois então, tudo em nome do “Compromisso com Deus”.

A perseguição às pessoas de religiões de matriz africana é histórica no nosso país. Um país de inúmeras violências, estruturalmente racista, seja economicamente estruturado pelo racismo, seja legalmente estruturado e formulado por meio da estrutura racista-patriarcal-cis-heteronormativa.

Caso você passe por situações de violação dos seus direitos, busque ajuda de instituições, da sociedade civil organizada, da Defensoria Pública e de pessoas que possam advogar em sua defesa.

>|< Há sempre um Alajô por nós! >|<

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Fontes:

(1)https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/10/07/conselho-tutelar-veja-resultados-das-eleicoes-de-2019.ghtml

(2)https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/10/01/a-batalha-entre-catolicos-e-evangelicos-pelo-dominio-dos-conselhos-tutelares.ghtml

https://www.abcdoabc.com.br/abc/noticia/retirada-guarda-filhos-ultimo-recurso-justica-110822
https://oglobo.globo.com/brasil/casos-de-perda-de-guarda-de-criancas-por-maes-praticantes-de-religioes-de-matriz-africana-alarmam-especialistas-25143129

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm

https://globoplay.globo.com/v/10724121/?s=0s
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