Observatório do Racismo Religioso

O Observatório estreia nesta sexta-feira trazendo as palavras mais do que necessárias do Ilê Axé Omiojuarô, através de Babá Adailton de Ogun e Luciane Barbosa – Iyawô do Ilê Omiojuarô, Dofonitinha de Oxum; do Ilê Axé Omi Ogun Siwajú através de Gustavo Mello – Babá Gustavo de Oxóssi e da ONG Criola por Lúcia Xavier e Marina Ribeiro por ocasião da celebração da IX Cúpula das Américas: 

Vimos, por meio desta, e por oportunidade da celebração da IX Cúpula das Américas, submeter a V. Sa. as informações que seguem, com especial ênfase em fatos que impactam os direitos humanos no que se refere à liberdade religiosa, aos direitos econômicos, sociais, políticos, culturais e ambientais, de mulheres, homens e crianças, sobretudo pessoas negras membros de religiões de matriz africana no Brasil.

Quem somos

Somos representantes de organizações que lutam pelos direitos das populações negras no Brasil e, atualmente, estamos atuando de modo articulado para o combate ao racismo religioso no Brasil no âmbito do projeto “Racismo Religioso e Redução da Violência e Discriminação contra Praticantes de Religiões Afrodescendentes no Brasil”, em parceria com a organização Raça e Igualdade.

CRIOLA é uma Associação civil feminista e antirracistas fundada e conduzida por mulheres negras. Fundada em 1992, atua na construção de uma sociedade na qual os valores de justiça, equidade e solidariedade são fundamentais, enfrentando o racismo patriarcal cis-heteronormativo, bem como desenvolvendo ações que visem à melhoria das condições de vida da população negra e, em particular, das mulheres negras, cis e trans, prezando pela sua inserção social e política para que sua presença e contribuição sejam acolhidas como um bem da humanidade.

A comunidade de terreiro Ilê Axé Omiojuarô (A Casa das Águas dos Olhos de Oxóssi) atua, desde a sua fundação por Beatriz Moreira Costa (Mãe Beata de Iemanjá) em 1985, em questões sociais, culturais e políticas. Hoje liderada por

Adailton Moreira Costa (Babá Adailton de Ogun), suas ações continuam a abranger o combate ao genocídio da população negra, a violência doméstica e a defesa do meio ambiente, dentre outros temas caros à população negra no Brasil e no mundo.

O Ilê Axé Omi Ogun siwajú (A Casa de Poder das Águas tem Ogun à frente) é uma comunidade de terreiro sediada na zona rural da cidade de São Félix – BA, em área remanescente de quilombo. Fundada nas primeiras décadas do século XX, por Mamédio Silva (Mamédio de Ogum) a Ilê Axé Omi Ogun siwajú, agora liderada por Gustavo Melo Cerqueira (Babá Gustavo de Oxossi), tem se dedicado a projetar ações de promoção do bem-estar social da população negra do Recôncavo Baiano.

Racismo Religioso no Brasil

Já não é novidade que o racismo é um dos eixos estruturantes da sociedade brasileira. Prova disso é o modo como as populações negras e indígenas são as mais afetadas com relação ao acesso à saúde, educação, trabalho e renda. Some-se a

isso, o grau de vulnerabilidade dessas populações a diversas formas de violência como, por exemplo, o cerceamento de seu direito à crença, ou a sua liberdade religiosa. Uma das principais características do racismo estrutural no Brasil está no modo como algumas ações causam danos desproporcionais à população negra. Assim, é necessário que tenhamos condições de interpretar como certas ações, de iniciativas pública ou privada, têm atingido de modo desproporcionalmente danoso às comunidades religiosas de matriz africana.

Portanto, o racismo religioso, enquanto faceta do racismo estrutural, não engloba apenas os danos causados pelo intencional desrespeito à liberdade religiosa das populações negras e indígenas, mas também considera as ações que causam danos às comunidades tradicionais e espaços religiosos negros e indígenas.

O contexto político e social

O aumento da violência racista no Brasil tem sido motivado por correntes políticas que se norteiam por ideias conservadoras no campo dos costumes, em que os debates sobre raça, gênero, identidade de gênero e direitos são rejeitados. Nesse sentido, o fato de que a maioria das lideranças religiosas atacadas ser de mulheres negras e homossexuais demonstra que o racismo religioso se articula com as dimensões de gênero, identidade de gênero e orientação sexual.

Da mesma maneira, o racismo estrutura os territórios e o acesso aos direitos sociais, dificultando acesso ao saneamento básico, saúde, água potável e qualidade de vida nas periferias dos grandes centros, nas periferias dos estados, nas áreas rurais e mais pobres; ou seja, à cidadania dos povos de terreiro.

É nesse contexto que as religiões de matriz africana têm sofrido nos últimos anos duros ataques racistas de setores da sociedade brasileira: terreiros incendiados e invadidos, expulsão de lideranças de seus locais de culto, territórios depredados, perda de guarda dos filhos, atentados a tiros, apedrejamentos e homicídios (pelas forças do Estado, pela milícia, pelo tráfico e por grupos racistas que se autoidentificam representantes neopentecostais), são apenas alguns exemplos das muitas modalidades de violência a que nossas comunidades estão sujeitas cotidianamente, como tem sido reportado abundantemente em alguns veículos de imprensa, ainda que sem a necessária profundidade e alcance. As medidas contra esses crimes e para proteger e salvaguardar essas religiões e culturas têm alcançado poucos e, por vezes, apenas provisórios resultados.

Liberdade Religiosa, Democracia e Limitação Institucional

A liberdade religiosa é um direito fundamental, consagrado pela Constituição Federal brasileira e, também, nos principais tratados internacionais de direitos humanos. Assim, não se trata apenas de direito natural, sem força jurídica. A consolidação do pacto democrático e republicano demanda que todos os brasileiros e brasileiras sejam reconhecidos como sujeitos de direito e que a essas pessoas sejam garantidos direitos econômicos, sociais e políticos.

A proteção do direito à liberdade em sua mais ampla acepção, busca garantir a liberdade de locomoção, de emitir opinião, de se expressar, de crer e professar nossas crenças, de criar vínculos associativos sem a interpelação do Estado, mas,

sobretudo, com a proteção do mesmo. É notório que tanto o aumento de atos de racismo religioso quanto o aparente

desinteresse do Estado em atuar para a proteção das comunidades negras e indígenas têm crescido ainda mais desde 2018, com a ascensão de Jair Messias Bolsonaro a presidente eleito do Brasil.

Nesse mesmo diapasão, é observável, no âmbito Federal, o avanço da bancada evangélica no Congresso Nacional. Atualmente constituída como Frente Evangélica Parlamentar, composta por 181 deputados federais e 8 senadores, representa filiados de 80% dos partidos representados na Câmara, e é a bancada que vota mais alinhada às propostas do governo Bolsonaro, seguindo sua pauta conservadora.

O fundamentalismo cristão político consegue legitimar projetos que nutrem estruturas hegemônicas opressoras em todo país, das esferas federal à municipal. Nesse sentido, podemos destacar dois episódios que ocorreram em 2022. O mais recente ocorreu em Itaboraí, município da região metropolitana do estado do Rio de Janeiro, quando o pastor Felippe Valadão, da Igreja Lagoinha, atacou religiões de matriz africana em um evento oficial da Prefeitura Municipal de Itaboraí, durante culto organizado pela administração local para a festa de aniversário de 189 anos da cidade. Nela, o pastor, aos gritos dizia: “De ontem para hoje tinha quatro despachos aqui na frente do palco. Avisa aí para esses endemoniados de Itaboraí: o tempo da bagunça espiritual acabou, meu filho. A igreja está na rua!!! A igreja está de pé!!! E ainda digo mais: prepara para ver muito centro de umbanda sendo fechado na cidade!”

Tal evento foi organizado com apoio institucional, usando recursos públicos para favorecer o discursos de cunho religioso fundamentalista, em um evento de manifestação festiva, popular, que deveria ser laico. O outro episódio ocorreu no dia 01 de janeiro de 2022, quando o Ilê Axé Ayabá Omi, conhecido como o Terreiro das Salinas, de tradição Jeje-nagô, fundado pelo Babalorixá Lívio Martins, em São José da Coroa Grande, estado de Pernambuco, foi alvo de um incêndio criminoso que destruiu completamente o espaço.

Segundo os membros da comunidade, outras três situações já tinham ocorrido contra a casa quando os rituais foram interrompidos com a justificativa de que os encontros infringiram as leis de bom convívio na localidade onde está o Ilê Axé Ayabá Omi. Após o incêndio todos os procedimentos burocráticos e jurídicos foram tomados. O caso segue em investigação pelo Ministério Público de Pernambuco (MPPE) mas, até o momento, continuamos sem respostas.

Outra situação que tem aumentado são questões relacionadas à guarda de crianças e adolescentes. Através de denúncias de familiares ou vizinhos, mães estão perdendo a guarda de filhos e filhas por serem membros de religiões de matriz africana. É o caso, por exemplo, o de uma jovem negra de 22 anos, moradora de Cabo Frio, no Rio de Janeiro, que preferiu não se identificar. Ela contou que, após ter falado ao ex-marido que iniciou a filha de oito meses no candomblé, o rapaz a ameaçou fisicamente. Além disso, o pai da criança, na ocasião, chegou a tirar o bebê à força dos braços da mãe. Após o boletim ser feito na Delegacia, ela conseguiu recuperar a menina.

Apesar de ser configurada a situação como intolerância religiosa, a jovem não conseguiu registrar o caso como tal na delegacia. Assim, o pai da menina foi indiciado, inicialmente, por injúria, preconceito e ameaça, mas apenas foi oferecida a denúncia em relação ao crime de ameaça enquanto que o de injúria qualificada foi arquivado “por se entender que as expressões atribuídas ao acusado não tiveram o intuito de ofender a vítima”.

Outro caso similar é o da Ialorixá Josileide da Gama, que perdeu a guarda dos filhos de 11 e 15 anos para a irmã no início de 2020, em João Pessoa, na Paraíba. De acordo com a denúncia descrita pelo Conselho Tutelar, a mãe teria colocado os meninos “em situação de risco constante dentro da própria casa, com a realização de atividades religiosas regadas a bebidas e até altas horas, com a presença de pessoas de conduta duvidosa”. Contudo, nenhum laudo foi produzido para comprovar violências físicas ou psicológicas contra as crianças.

Nos dois casos as mulheres foram afastadas de seus filhos. Uma marca presente nos casos da perda da guarda é o fato de recair sobre as mães das crianças. Não é uma coincidência, já que vivemos em uma sociedade racista patriarcal cis-heteronormativa, e é imposto à mulher maior responsabilidade na criação dos filhos.

Sendo assim, o juízo de valor sobre a mulher somado à criminalização por ser de religiões de matriz africana se concretizam em decisões a partir de argumentos rasos e sem a devida investigação necessária. Finalmente, também crescem, na Bahia, os casos de ameaça de desterritorialização das comunidades de terreiro por imposição de força econômica, ameaça e violência física em vastos territórios por vezes ocupados por diversos terreiros de candomblé e residências de particulares. Recentemente, chama a atenção o quanto as comunidades tradicionais situadas na região conhecida como Terra Vermelha, na cidade de Cachoeira, estado da Bahia, têm sido constantemente ameaçadas por empregados armados e ações judiciais movidas por uma indústria de fabricação de papel que declara ser a atual proprietária das terras.

Conclusão e recomendações

Apesar de representar cerca de 2% (IBGE 2010) das religiões praticadas no Brasil, as de matriz africana são alvos dos principais casos de violências motivadas pela fé que professam. Em 2021, segundo dados do Instituto de Segurança Pública (ISP) do Rio de Janeiro, foram registradas 1.564 ocorrências de crimes relacionados ao racismo religioso – quase 200 casos a mais que em 2020. Foram mais de quatro ataques diários, mesmo em meio à pandemia. Ainda assim, sabemos que esses números são subnotificados, dado que muitos desistem de realizar denúncias pela impunidade experienciadas em outras ocorrências.

Em apenas um ano, o número de denúncias sobre ataques contra terreiros mais que dobrou. De acordo com a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH), do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH), em 2020, foram registrados 243 casos. Já em 2021 este número chegou a marca de 571.

O Estado brasileiro, até o momento, tem falhado em desenvolver respostas sistêmicas e planos abrangentes de combate ao racismo. Contudo, os movimentos negros, organizações sociais e lideranças religiosas de matriz africana vêm pontuando a necessidade de políticas públicas com destinação de recursos para reparação em casos de violação, mas, sobretudo, para a promoção dos direitos humanos e igualdade racial.

Afirmando que o racismo religioso, enquanto faceta do racismo estrutural, causa danos imensuráveis e, praticamente, irreparáveis às diversas expressões de religiões de matriz africana brasileira é imperativo garantir a laicidade do Estado face a quaisquer fundamentalismos religiosos, entendendo-a para além de sua compreensão nos limites do cristianismo, como historicamente tem sido considerada. O Estado brasileiro precisa garantir o acompanhamento mais rígido sobre o tema, e dos casos de violações dos direitos humanos sofridos pelos membros das religiões de matriz africana e a conclusão deles.

O presidente da república, Jair Bolsonaro, demonstra total desprezo às políticas públicas voltadas para o campo dos direitos sociais e direitos humanos, o mesmo sendo observado em representantes e autoridades do governo, que abertamente negam a existência do racismo no Brasil e posicionam-se contra medidas específicas de combate ao racismo e à discriminação racial.

Foto: André Mantelli

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