Okan: Egbé – a fonte do sangue da luta diária pela independência

É bastante simbólico que em 2022, duzentos anos depois do processo que fez nosso território deixar de ser uma colônia portuguesa, a comemoração venha de Portugal, na forma do coração de um rei, conservado em formol e guardado em uma caixa de ouro. O rei, que de tão português retorna para defender seu verdadeiro país, um escravista. O ouro, um dos maiores símbolos da devastação dessa terra e das vidas negras e indígenas. O formol, química e metáfora do conservadorismo do nosso Estado, que tenta incessantemente apagar as tradições populares, afroindígenas e periféricas.


A Independência do dia 7 de setembro deixa no poder o filho do rei colonizador, D. João VI. Esse filho, D. Pedro I, depois retorna à Portugal, sua casa e antiga metrópole, deixando em seu lugar novamente o filho, D. Pedro II, neto do rei português colonizador. É a filha deste, Isabel, que assina uma lei que diz que “fica proibida a escravidão no território nacional”. Nada mais, nenhum direito, nenhuma reparação, nenhuma virada no poder que signifique poder e participação para aqueles que vinham sendo explorados por séculos.


Como tudo nesse país, no entanto, a Independência de 1822 não deixou de ter participação popular e, apesar do apagamento oficial, a população negra (escravizada e liberta), pobres, indígenas e mulheres lutaram por ideais de liberdade muito mais amplos do que os do Estado, comandado pela monarquia e pelas elites proprietárias.

Entre as tantas lutas que aconteceram principalmente no Nordeste brasileiro, a Bahia, especialmente a região do Recôncavo da Baía de Todos os Santos, terra da família de nossa Iya N’La Beata e tantas outras mulheres e homens de axé que construíram esse país, foi um dos lugares que teve um papel preponderante nas lutas negras e populares pela Independência.

Quem precisa de imperador quando se tem exemplos como Maria Felipa, e a força ancestral dos caboclos, entre outros? Como todas as heroínas (heróis e heroínes) populares que dão seus corpos e nomes às lutas, Maria Felipa é ela e também é coletivo, carrega consigo as lutas de outras mulheres negras. Os Caboclos ressignificam as cores de uma bandeira marcada por casas reais europeias, retomando de fato e direito a força do verde das matas, o amarelo do ouro e também do sol, o céu estrelado que conduz e nos ligam aos caminhos cruzados das nossas vidas insistentes, cobertos pelo branco alá funfun.


Por esses e outros caminhos coletivos, vivos e populares é que podemos dizer que o coração que bombeia os cotidianos de independência e liberdade que nos movem estão para muito além da representação fria e em formol do Estado imperial. O coração que bombeia nossa liberdade é vivo e ancestral, atravessa tempos e fronteiras, é coletivo, é comunidade. Com as devidas licenças, um Okan Egbé.

*Rafael Maul é Dofono de Oxóssi do Ilê Omiojuarô e Professor da UFRRJ

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